Brasil perde mais de sete vezes o volume do Cantareira
O Instituto Trata Brasil em parceria com a consultoria GO Associados publicou o “Estudo de Perdas de Água 2024 (SNIS, 2022): Desafios na Eficiência do Saneamento Básico no Brasil”, para mostrar o grande problema socioeconômico da ineficiência no controle de perdas de água no Brasil. Elaborado a partir de dados públicos do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS, ano-base 2022), o levantamento analisou as cinco macrorregiões brasileiras, das 27 Unidades da Federação e também dos 100 municípios mais populosos (incluindo as capitais dos estados), que figuraram no Ranking do Saneamento de 2024. No Brasil, existem cerca de 32 milhões de pessoas que sofrem com a ausência de água tratada. A situação é mais preocupante quando analisado o elevado índice de perdas na distribuição, em que 37,78% da água é perdida antes de chegar às residências brasileiras. Entre os gargalos a serem superados para a universalização do saneamento básico é necessária a maior eficiência no controle de perdas de água. O estudo revelou que o volume total de água não faturada em 2022 (cerca de 7,0 bilhões de m³) equivale a quase 7.636 piscinas olímpicas de água tratada desperdiçadas por dia ou mais de sete vezes (7,1) o volume do Sistema Cantareira – o maior conjunto de reservatórios do estado de São Paulo.
Considerando-se somente as perdas físicas (vazamentos), o volume (mais de 3,6 bilhões de m³) seria suficiente para abastecer aproximadamente 54 milhões de brasileiros em um ano. Esta quantidade não somente equivale a mais de um quarto da população do País em 2022, como também está bastante acima do número de habitantes sem acesso ao abastecimento de água nesse ano, cuja grandeza situa-se em torno de 32 milhões. Além disso, com esse mesmo volume, seria possível abastecer os 17,9 milhões de brasileiros que vivem em favelas por mais de três anos. Ao meio ambiente, a redução dessas perdas implicaria a disponibilidade de mais recurso hídrico para a população sem a necessidade de captação em novos mananciais.
Com o cenário de mudanças climáticas, os desafios para a disponibilidade hídrica nos mananciais ficam mais claros e as perdas de água afetam diretamente os custos de produção e a demanda pelo insumo. Neste sentido, um elevado nível de perdas reais equivale a uma captação e a uma produção superior ao volume efetivamente demandado, gerando ineficiências nos seguintes âmbitos – para produzir a água, acaba-se tendo maior custo dos insumos químicos, energia para bombeamento, entre outros fatores de produção; maior custo de manutenção da rede e de equipamentos; Uso excessivo da capacidade de produção e de distribuição existente; e Maior custo oriundo da possível utilização de fontes de abastecimento alternativas de menor qualidade ou de difícil acesso. Dentre os desequilíbrios ambientais estão a Pressão excessiva sobre as fontes de abastecimento do recurso hídrico, uma vez que se capta mais água do que efetivamente chega à população; e Maior custo posterior para mitigação dos impactos negativos dessa atividade (externalidades).
No Brasil, a definição de nível aceitável de perdas de água foi definida pela Portaria 490/2021, do Ministério do Desenvolvimento Regional (MDR), que indica que para um município contar com níveis excelentes de perdas, deve ter no máximo 25% em perdas na distribuição e 216 litros/ligação/dia em perdas por ligação. Caso consiga sair dos atuais 37% para os 25%, o Brasil economizaria cerca de 1,3 bilhão de m3 ou o equivalente ao consumo médio de aproximadamente 22 milhões de brasileiros em um ano, mais da metade da quantidade de habitantes sem acesso ao abastecimento de água em 2022. Quuando o índice brasileiro de perdas de água é comparado com os padrões internacionais, observa-se que o sistema de abastecimento ainda apresenta grande distância da fronteira tecnológica em termos de eficiência. As perdas de água no Brasil se situaram em torno de 35% (a depender do indicador observado) em 2022, cerca de 20% acima da média dos países desenvolvidos, que foi de 15%. No cenário internacional, para efeito de comparação do indicador de perdas brasileiro com o de outros países, a fonte utilizada é a International Benchmarking Network for Water and Sanitation Utilities (IBNET) - vale destacar que a periodicidade dos dados disponíveis varia bastante entre os países. Para fins de comparação, no caso brasileiro, foi considerado o IN049 – Índice de Perdas na Distribuição do SNIS de 2022, no valor de 37,78%. O Brasil está distante tanto de países desenvolvidos, como de seus pares em desenvolvimento e ocupa a 78ª posição no ordenamento das 139 nações analisadas, ficando atrás da China de 2012, com 20,54%, da Rússia de 2020, com 26,59%, e da África do Sul de 2017, com 33,73%, estando à frente somente da Índia de 2009, que tinha 41,27% de perdas de água.
A situação de perdas no Brasil apresenta significativas diferenças entre as diversas macrorregiões. As regiões Norte e Nordeste são as mais carentes e devem enfrentar os maiores desafios para reduzirem seus índices de perdas. Além disso, essas regiões também são aquelas que possuem os piores indicadores de atendimento de água, de coleta e de tratamento de esgotos. Ao longo do período analisado, não houve nenhuma evolução significativa nos indicadores de perdas sob a perspectiva macrorregional. Pelo contrário, a tendência é de estagnação, com poucas exceções. No indicador de perdas na distribuição, a macrorregião que mais apresentou piora no último quinquênio de dados do SNIS, 2018–2022, foi a Nordeste, com aumento de 0,69%. Por outro lado, observa-se a notável melhora na macrorregião Norte, com redução de 8,59% no mesmo período, embora ainda seja o maior índice dentre as macrorregiões brasileiras. Entre os municípios com as maiores evoluções o destaque fica com Cariacica (ES), que evoluiu em 34,1% nos últimos anos e apresentou apenas 25,03% de perdas de água em 2022, índice próximo da meta estabelecida para 2034 pela Portaria 490/2021 do MDR de se alcançar 25% em perdas na distribuição (IN049).
Nos indicadores de perdas a nível estadual, a tendência observada anteriormente é mantida, com os estados das macrorregiões Sul, Sudeste e Centro-Oeste apresentando desempenho acima da média nacional, e os estados das macrorregiões Norte e Nordeste abaixo dela. A média dos 100 maiores municípios no índice de perdas de água na distribuição foi de 35,04%, valor inferior à média nacional de 37,78%. Entretanto, o índice continua distante dos padrões de excelência estabelecidos pela Portaria 490/2021. Somente nove dentre os 100 municípios mais populosos do Brasil em 2022 atendiam às metas da Portaria 490/2021, simultaneamente, indicando haver um longo caminho a ser percorrido na busca pela redução das perdas de água. Dos 100 municípios considerados, apenas 14 possuem níveis de perdas na distribuição menores que 25% (valores considerados como adequados). Os dados mostram ainda que 1/5 da amostra (20 municípios) tem perdas na distribuição superiores a 50%, existindo assim grande potencial de redução de perdas de água na distribuição nesses municípios. No índice de perdas na distribuição, apenas duas das 27 capitais apresentaram valores inferiores à meta de 25%, Goiânia (GO) e Campo Grande (MS). O indicador médio do grupo foi de 43,17%, superior à amostra dos 100 municípios mais populosos do país e à média nacional, e ainda mais distante, portanto, da meta de 25%, regulamentada pela Portaria 490/2021. Novamente, há municípios com níveis críticos, como Porto Velho (RO), com 77,32%, e Macapá, com 71,43%.
Para calcular os ganhos econômicos ao País pela redução de perdas, o estudo apresentou uma análise de três cenários: o otimista, o realista e o pessimista. Cada um deles responde à média nacional do nível de perdas a ser alcançada em 2034: 15% (cenário otimista), 25% (cenário realista) e 35% (cenário pessimista). No Cenário Realista, é possível constatar que existe um potencial de ganhos brutos com a redução de perdas de água de R$ 40,9 bilhões até 2034. Caso sejam considerados os investimentos necessários para a redução de perdas, o benefício líquido gerado pela redução de perdas é da ordem de R$ 20,4 bilhões em 11 anos. “Ano após ano, observamos uma lenta evolução nos indicadores de perdas de água, enquanto milhões de brasileiros continuam sem acesso regular e de qualidade à água potável para ter uma vida minimamente digna. São mais de 7,6 mil piscinas de água potável desperdiçadas todos os dias. Além de afetar o abastecimento de água dos habitantes, esse desperdício exacerbado resulta em impactos ambientais severos, uma vez que os efeitos das mudanças climáticas, como vemos na tragédia vivida pela população do Rio Grande do Sul, estão cada vez mais presentes no país, afetando diretamente a disponibilidade hídrica para a população. Esforços e investimentos em redução de perdas de água são necessários para mitigar os impactos climáticos, promover maior segurança hídrica e fortalecer a infraestrutura das cidades”, comenta Luana Pretto, presidente do Instituto Trata Brasil. Para o Professor da Escola de Administração de Empresas de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas (EAESP-FGV) e Sócio Executivo da GO Associados, Gesner Oliveira, a calamidade que o Rio Grande do Sul enfrenta mostra a necessidade urgente de uma gestão mais eficiente dos recursos hídricos no Brasil. “A despeito do elevado volume oriundo das chuvas, essa água não é potável, de modo que muitas residências ficaram desabastecidas, pois as estações de tratamento estavam literalmente submersas. Neste sentido, com perdas de água na casa dos 40% no Brasil, onde muitas regiões ultrapassam esse valor, fruto de vazamentos e de gestão ineficaz, é crucial investir em infraestrutura, tecnologia e políticas públicas eficazes”. O professor conta ainda que a combinação de infraestrutura inadequada com frequência cada vez maior de eventos climáticos extremos permite que situações como a do Rio Grande do Sul se repitam, resultando em prejuízos incalculáveis. “Portanto, se há uma lição a ser aprendida desta situação, depreende-se a importância de ações concretas e imediatas, visando garantir a segurança hídrica e o atendimento às metas da Portaria 490/2021 de modo a prevenir futuras tragédias”.