Enquadramento de Corpos Hídricos: há novos rumos?

24/11/2015

Por Maria Luiza Machado Granziera*

Em um momento em que a água vem se tornando escassa e os sistemas de abastecimento público buscam alternativas para garantir o fornecimento desse recurso às populações, vem à tona a necessidade de uma nova ótica para a implementação dos instrumentos de gestão de recursos hídricos com destaque, aqui, para o enquadramento.

O enquadramento de corpos hídricos em classes de usos preponderantes é um dos instrumentos de gestão instituídos pela Política Nacional de Recursos Hídricos, Lei nº 9.433/1997 e pelas políticas estaduais. Seu objetivo é definir a meta de qualidade de cada rio, trecho de rio, lago ou ainda das águas subterrâneas contidas em aquíferos. Essa meta deve ser obrigatoriamente alcançada ou mantida ao longo do tempo. A referência para fixar essa meta consiste nos tipos de usos pretendidos de forma preponderante: para usos mais exigentes, a qualidade da água deve ser maior: para usos menos exigentes, a qualidade pode ser mais flexível.

O enquadramento é um ponto de intersecção entre a gestão ambiental e a gestão das águas, na medida em que compreende o recursos hídricos como um bem natural ao mesmo tempo que reconhece a sua essencialidade para a vida humana, a biodiversidade e a economia. O enquadramento não define a qualidade presente, mas o que se pretende para um determinado corpo hídrico ao longo de um prazo estabelecido, em que metas intermediárias, progressivas e obrigatórias devem ser cumpridas visando ao atendimento da meta final de qualidade da água.

No âmbito do mundo real, nada mais civilizatório que um ordenamento jurídico contemplar a sociedade com um instrumento legal que possa estabelecer, de forma clara, os níveis de qualidade necessários em cada corpo hídrico, para garantir a perenidade dos diversos usos da água. Os comitês de bacia hidrográfica, fóruns institucionais da articulação em âmbito regional, são os órgãos competentes para propor aos respectivos Conselho Nacional de Recursos Hídricos ou aos Conselhos Estaduais a definição das classes de qualidade, por meio do enquadramento. Supõe-se, nessa ótica, considerando que as políticas de recursos hídricos caminham em sua maioria para completar duas décadas, que esse instrumento já estaria implantado e as medidas de atingimento das metas de qualidade em pleno andamento. Simples assim. Todavia, a realidade é outra.

O enquadramento, na forma como prevista nas políticas de recursos hídricos, não aconteceu. É certo que no estado de São Paulo, os corpos hídricos foram classificados expressamente pelo Decreto nº 10. 755/1977, em Classes 1, 2, 3 e 4, tendo em vista que o Decreto estadual nº 8.468/1976 havia estabelecido a norma de classificação de corpos hídricos e de lançamento de efluentes. As Resoluções Conama nº 357/2005 e 430/2011 são as normas nacionais em vigor sobre a matéria, sendo que na ausência de classificação de um corpo hídrico, ele deve ser considerado de classe 2. Existem conflitos entre a estrutura da norma do estado de São Paulo e as resoluções Conama, o que dificulta ainda mais a compreensão da matéria em São Paulo. Nos demais estados, se não possuem regras específicas, vigoram as normas Conama.

Nos momentos atuais, em que a escassez da água passa a ser uma realidade em muitas regiões que desconheciam essa situação, o efetivo enquadramento de corpos hídricos em classes de uso preponderante seria uma  perspectiva de solução para a qualidade das águas e, consequentemente, para garantir o abastecimento público. Inúmeros planos de bacias hidrográficas possuem suas propostas de qualidade das águas, mas não se completam esses processos por meio da fixação efetiva das metas obrigatórias e progressivas a serem alcançadas ao longo de um determinado período de tempo, conforme previstas nas normas legais.

A dificuldade de fixar as metas e efetivar o enquadramento decorre de fatores relevantes. Em primeiro lugar, a necessidade de indicar a fonte de financiamento para as medidas obrigatórias e progressivas. Não há proteção ambiental sem a aplicação de recursos financeiros, tecnológicos e humanos. Além disso, uma vez fixada a classe de uso e as metas intermediárias, para que se alcancem os níveis de qualidade pretendidos, inicia-se um processo transparente, passível de ser cobrado pela sociedade. Se não equacionado o financiamento, não há como responder pela implementação do processo de enquadramento. Outro fator refere–se ao fato de que, indiretamente, o enquadramento é condicionador do uso e da ocupação do solo. Por exemplo, se um rio é definido como de classe 1, ou seja, com metas mais exigentes para a sua qualidade ao longo do tempo, as atividades realizadas em seu entorno não podem gerar poluição que possa descaracterizar as condições impostas para essa classe, prejudicando o processo de efetivação do enquadramento.

O tema é conflituoso e não vem ocorrendo acordo na definição das classes de uso para os corpos hídricos. Muito menos se verifica evolução nos processos de fixação de metas de qualidade a serem cumpridas ao longo do tempo. Todavia, essa dificuldade explicita exatamente os gargalos da implementação de um processo que poderia minimizar e muito os efeitos da escassez hídrica. Vale uma reflexão a respeito.


*Advogada, professora associada ao Programa de Mestrado e Doutorado em Direito Ambiental Internacional da Universidade Católica de Santos. Autora dos livros Direito de Águas – Disciplina Jurídica das Águas Doces 4aed. e Direito Ambiental 4a. ed.,publicados pela Atlas.